miércoles, 27 de agosto de 2014

Lucy e o mito do 10%

O ator Morgan Freeman, no papel de um neurocientista palestrando num local erudito, olha para a sua  plateia e diz muito seriamente, "É fascinante saber que o ser humano usa apenas o 10% de seu cérebro".  Isto acontece no trailer do filme, estrelado por Scarlett Johanson, Lucy. Um pouco depois, no mesmo trailer alguém pergunta  a M. Freeman, o que aconteceria se pudéssemos usar o 100% do cérebro: "Não faço a menor ideia" responde o cientista, enquanto as imágens mostram os poderes incríveis que Lucy-Johanson parece ter obtido por causa de umas drogas que lhe foram administradas.  O filme teve estreia há algumas semanas nos EUA, mas só  em setembro no Brasil. Evidentemente não pude vê-lo, então só posso falar pelas poucas cenas do trailer.  E me chama a atençao o retorno ao mito do 10%.  

Há mais de 10 anos escrevi um artigo sobre o tema que foi publicado na Revista Exactamente (Nro 24, Outubro 2002).  Como vejo que não perdeu atualidade, transcrevo-o, quase na íntegra, abaixo. 

Supermentes devaluadas: o mito do 10%


Corria a década de 1970, quando pela primeira vez escutei a teoria de que nosso cérebro está subutilizado. "Usamos um 10% de nossa capacidade. Einstein chegou a usar apenas o 20%!" A afirmação, mais do que verossímil era profética, augurando um porvenir feliz. Talvez poderiamos encontrar a forma de utilizar o 90% restante e nos elevarmos assim até uma estatura 5 vezes superior à  de Einstein. Talvez poderiamos, como o célebre Fernão Capelo Gaivota de R. Bach, um dos estandartes da divulgação do mito das Supermentes, nos deslocarmos instantaneamente ou atravessar a dura rocha dos rochedos.  Não demoraram em aparecer livros de autoajuda com técnicas para aumentar esse porcentual. O pontapé inicial parece ter sido dado pelo best-seller, hoje fora de impressão, Powers of Mind (A. Smith, Ed. Random House, N.Y., 1975). O livro explora todas as técnicas para aumentar a porcentagem de uso de nossa mente, desde a meditação Zen, até o I-Ching, passando pela pretensiosa Meditação Transcendental; e nos conta inúmeras histórias de pessoas que curaram doenças incuráveis, ou adquiriram poderes sobrenaturais, da noite para o dia, apenas porque aprenderam a usar sua mente com maior eficiência.

Quándo começou esta mania? É difícil de precisar, como em toda lenda. A ideia de que nossa mente é capaz de dominar a  matéria, subjacente no mito das Supermentes, é muito antiga, centenas de anos como mínimo (de alguma forma era uma hipótese dos alquimistas). Mais recentemente alguns referem a Einstein quem em alguma entrevista teria falado em forma imprecisa que ele utilizava 20% de sua capacidade mental. Creio adivinhar que não estava falando seriamente. O famoso Dale Carnegie, parece que também comentou alguma vez este mito, embora suas fontes saõ desconhecidas.

Os antecedentes mais firmes, parecem provenir de experiências que na realidade demonstram lo contrário. Na década de 1920, Karl Lashley intentou localizar as lembranças. Treinou ratos de laboratório para lembrar o caminho de escape de um labirinto, e depois foi retirando diferentes partes do cortex cerebral. Lashley informa que em alguns casos até con 90% da massa perdida o rato podia lembrar o caminho. No entanto, nos mesmos trabalhos, ele escreve que esses ratos perdem performance ao mesmo tempo.

A partir da década de 1960, foram realizados experimentos com pessoas para observar a área do cérebro usada durante diferentes atividades.  Os resultados mostram que normalmente uma área pequena é utilizada para uma atividade determinada. O que é bastante lógico, porque existe um certo gráu de especialização funcional no cérebro, e costumamos realizar uma tarefa por vez. Por exemplo, neste momento estou movendo apenas os músculos dos meus dedos enquanto escrevo, e mais alguns dos braços. O resto de minha massa muscular encontra-se relaxada. Isso não significa que só um 10% dos meus músculos têm alguma finalidade. Ao longo de um dia completo, muito provavelmente terei utilizado cada um deles em diferentes momentos. O mesmo acontece com o cérebro.

Alguns pacentes de hidrocefalia  têm o cérebro bastante comprimido e a pesar disso, são normais. Um exemplo extremo foi dado pelo pediatra britânico John Lorber: um brilhante estudante de matemática cuja substânica cinzenta tinha uma espessura de apenas 1 mm, quando o normal são 45 mm. Aliás, pessoas com danos cerebrais conseguem recuperar funções inicalmente perdidas.

Mal interpretados estes resultados levam a crer que grande parte do cérebro é ociosa. Muito pelo contrário, o que demostram é que o cérebro tem uma incrível capacidade para assumir funções de outras áreas, e que a memória não tem, provavelmente, um lugar específico, estendendo-se pelo volume todo. Por outra parte, se aceptamos como verdadeira a teoria da evolução darwinista, é muito difícil explicar por qué um órgão desenvolveu-se de forma muito avançada sem ser completamente utilizado. A natureza costuma ser muito avara, dá e obtem apenas o necessário.

Obviamente que sempre pode-se fazer hipóteses a posteriori, argumentando que fomo alterados genéticamente no passado, ou que já existiu uma raça de homens mais inteligentes que a atual, uma catástrofe acabou con ela e os sobreviventes esqueceram a maior parte de seus conhecimentos. Está claro que nenhuma destas ideias têm qualquer basamento com a evidência empírica, como sim tem a teoria da evolução.

Isto não é tudo. Suponhamos que efetivamente usamos um 10% de nossa capacidade cerebral, se conseguíssemos utilizar o 90% restante, quais habilidades novas ganhariamos? Imagino que falariamos mais idiomas, fariamos cálculos matemáticos mais complexos, executariamos mais de um instrumento musical, etc. e mais outros etc. Para os fanáticos da lenda da Supermente, isto não é suficiente. Eles imaginam habilidades paranormais: telepatia, visão remota, por exemplo. Adquirido aquele estado superior teriamos poder de dominação absoluto sobre a matéria. E por último ganhariamos o domínio sobre o tempo. Em suma, onipotência e imortalidade. Estas extrapolações da realidade não têm o menor apoio e mais bem parecem projeções dos desejos íntimos dos seus autores.

A verdade é que usamos nosso cérebro em quase toda sua capacidade (sempre podemos aumentá-la um pouco com mais exercitação). Depois de muito entrenamento podemos especializá-lo em algunas tarefas, como tocar um instrumento, jogar xadrez, aprender uma lingua estrangeira, ou simplesmente nos capacitarmos numa profissão. Isto já é maravilhosso, nenhum outro animal da Terra demonstrou tanta capacidade de autoconhecimento, aprendizagem e criação. Nosso cérebro é nossa marca distintiva no reino dos seres vivos. Não o devaluamos por dizer que o usamos em sua totalidade. Não é necessário crer em mágicas habilidades obtidas por meio de duvidosas técnicas para conhecer nossas esperanças e medos, nossas limitações e realizações. Em suma para saber qual é o nosso lugar no Universo.